quarta-feira, novembro 21, 2012

Falta Alma*


Não faltam só padarias, como criticou Roberta Ávila aqui no site da Naipe antes de receber uma avalanche de ódio e bairrismo dos mais arcaicos.

Faltam restaurantes, bares, parques, baladas, campinhos de futebol, teatros, cinemas e marinas. Sim, marinas. Quem é que nos nomeou juízes do que é necessário ou não para a cidade? E se alguém trabalhou a vida inteira honestamente e agora deseja gozar de uma tarde em cima de uma lancha? O fato de muitos não terem condição de comprar uma lancha invalida o direito de alguém comprar uma? Sim, faltam hospitais, creches, linhas de ônibus, saneamento, asfalto, escolas e policiais. Mas além de não termos tudo isso, devemos ficar sem lazer?
O Estado tem o dever de sanar os problemas estruturais da cidade mas tem também o dever de fomentar a cultura, a arte, o prazer. “Os bares estão cheios de almas tão vazias” canta Criolo. Essas mesmas almas que passam o dia fazendo piada de qualquer um que levante a mão pra fazer uma pergunta ou criticar algo. Se o prazer de ter um barco pode ser cerceado pela opinião pública, por que é que o prazer de sentar no bar e tomar uma cerveja tem toda legitimidade do mundo? Existe um medidor para o prazer sem culpa?
A Revista Naipe iniciou há 15 dias a apuração para o Guia Naipe de Verão 2013. Visitamos bares, restaurantes e cafés de Florianópolis e de outras partes do litoral catarinense. O que encontramos até agora? Muitas portas fechadas e muitos proprietários de cabeça baixa. Taliesyn, Barbarella, Don Bar, Cervejaria da Ilha, Thai, 1007 Beach Chik, Joy Hot Dog, Daissen, Bar do Mirante, Donovan Irish Pub, Aloha Café, Shiva Vege, Chilli, Solopizza da Lagoa, Edomae, a lista de estabelecimentos fechados este ano é extensa e tende a crescer. Muitos são os donos que tiveram um ano de mesas vazias e nem mesmo a temporada se aproximando parece acalentar a angústia.
A lista de estabelecimentos fechados este ano é extensa e tende a crescer. As raras e louváveis iniciativas de se ocupar os espaços públicos com música, arte e prazer são caçadas sistematicamente
Num sábado ensolarado decidimos conferir o tradicional sábado de samba no bar Canto do Noel. Bilhetinho na porta informando que mudaram para outro bar na Conselheiro Mafra. Conversamos com os músicos e descobrimos que tiveram um problema com o alvará. Alvará foi também o motivo da Sounds in da City ter sido deslocada do seu tradicional abrigo na Avenida Beira- Mar para a pista de skate na Trindade. O ERRO Grupo, projeto patrocinado pela Petrobras que experimenta arte como intervenção do cotidiano, teve sua solicitação de uso do espaço público do centro da cidade negada e fez duas apresentações em caráter de manifestação política. Sim, as raras e louváveis iniciativas de se ocupar os espaços públicos com música, arte e prazer são caçadas sistematicamente.
Sem conhecer a cidade e muito menos os problemas que ela vive, um paulista de origem coreana escolheu a ilha para ser seu lar. Ilhabela, São Paulo, Sarasota, Orlando, Mykonos, Zurique, St. Moritz, Munique: foi por essas cidades que o sushichef Emerson Kim rodou com suas facas afiadas antes de eleger Florianópolis para abrir seu restaurante. Emerson foi membro do “dream team” do Nobu, restaurante que tem 26 filiais ao redor do globo e é considerado por muitos a catedral da cozinha japonesa. Parte do que é servido no restaurante é pescado diariamente pelo próprio chef, um fissurado por roupas de borracha, lanternas e longas noites à procura de camarões e siris na Lagoa da Conceição. Quem atende os clientes é Inga Ezergale, uma letoniana com cinco línguas fluentes.
O casal não escolheu o nome à toa – o Black Sheep Sushi Bar é realmente uma ovelha negra entre os que oferecem sushi na cidade. Cream cheese, baldes de shoyu, bufê, festival, rodízio, não se encontra isso por lá. O chef propõe pratos delicados e sabores sutis que levam suas papilas gustativas para lugares nunca antes visitados. Mas depois de seis semanas aberto, o que mais se viu por lá foram carrancas. Gente torcendo o nariz para a ausência do bufê, do cream cheese, do exagero. Uma iniciativa que seria celebrada em outras cidades parece ser ignorada em Florianópolis pelo medo do novo, do ousado, do diferente. O chef já recebeu proposta para levar o empreendimento para São Paulo.
E o que é que nós, moradores da cidade, fazemos para não perdermos o direito ao lazer? Criticar e ameaçar aqueles que levantam a bandeira contra a inércia parece ser exatamente aquilo que não precisamos. Sim, Roberta Ávila é paulista e sente falta das padarias de São Paulo. Isso é motivo pra tanto ódio? Thiago Momm, editor-chefe da Naipe, concluiu: pão de trigo virou bernunça. Defendemos até a morte nosso direito de comer o pão velho e sem graça que ocupa os balcões das padarias da ilha. Sou formado em cozinha no Instituto Federal de Santa Catarina e cursei dois semestres de Panificação e Confeitaria na mesma instituição. Trabalhei em três grandes padarias da cidade e outros três restaurantes. Nasci em Florianópolis, filho e neto de manezinhos. Brado sem medo: as padarias de Florianópolis, em sua esmagadora maioria, são ruins. E agora? Como é que vão criticar um manezinho que já trabalhou nas padarias da cidade por falar mal da situação?
É fácil gritar “fora haole”, difícil é admitir que existe a chance de estarmos minimamente equivocados em nossas opiniões. Se tomamos os pães de trigo como patrimônio cultural, deveríamos tomar também o resto de nossas deturpadas tradições. Tombemos os bares que cobram consumação mínima de até R$ 100, os flanelinhas que nos extorquem pelas ruas, a casquinha de siri que não é feita com siri, as porções de camarão à milanesa cada vez menores e mais engorduradas, as filas intermináveis para as praias. Tombemos o nosso medo da polícia, a fila na frente dos postos de saúde, os preços nada populares do Mercado Público, a falta de tainha nas redes, as eleições que nos fazem debater sobre qual o menos pior, as cadeiras quase sempre vazias da Assembléia Legislativa, as bicicletas brancas que simbolizam os ciclistas mortos pelas ruas e ainda assim são roubadas. Tombemos a nossa ineficiência, a nossa inércia e o jeito torto como cuidamos de uma cidade que só merece amor. Florianópolis nos oferece praias, cachoeiras, peixes, passarinhos, dunas, mangues, vento, sombra, sol e chuva. E nós? O que damos em troca? Concreto, lixo, carros, esgoto e fumaça. O que você já fez de bom para a cidade em que mora?
*Escrito por Thiago Momm (Beba da Fonte)