Já tinha visto o filme.
Sim, eu sei que não deveria mas não fui capaz de resistir - a curiosidade era mais forte que uma dor de barriga no México (famoso mal de Montesuma).
Fiz pior.
Chamei amigos e abri cervejas- celebrei até!
Um acinte, concordo.
Chegada a hora, dia 07/12/08, Shaun Tomsom esteve aqui apresentando o Bustin Down The Door numa pré-estréia no Claro Open Air que, como nome indica mas não revela, é um cinema a céu aberto no Joquei clube do Rio de janeiro, logo ali na Gávea, com vista pra Lagoa Rodrigo de Freitas.
Todo floreio daria com os burros n'água pra descrever a beleza da paisagem, mas isso não é importante.
Sentamos na escada, todos lugares tomados, e aguardamos a entrada do primeiro campeão mundial que realmente importa (quem dá bola pro PT ?).
Shaun é um lorde, duma serenidade contagiante, fala mansa, pausada, o seu sotaque sul-africano acentuando o tom aristocrático das palavras que lhe brotavam da boca como seu ataque em Pipe no início da carreira, certeiro, pontual.
Em menos de 15 minutos conversando com a platéia, Shaun fez mais pelo surfe brasileiro do que toda imprensa junta nos últimos 15 anos.
Bastou uma palavra para Shaun demolir uma expressão que por aqui vendeu muita bermuda e camiseta.
Durante muito tempo fomos refens do misticismo da expressão soul para traduzir tudo que não somos capazes de explicar na relação que temos com o Mar.
Desconfiava do jeito etéreo do termo traduzido corretamente para 'alma'.
Como um sinônimo de espírito podia servir a tantos senhores, quase todos eles de olho na minha (e na sua) carteira ?
Alma do negócio, né ?
Foi quando naquela noite Shaun Tomsom falou assim: Espero que todos aqui se imaginem com 19 anos, com um sonho. Tínhamos todos essa idade na época e fazíamos tudo com o coração. Sempre surfei com o coração. Sempre fiz tudo com o coração...
Lembrei do poema do russo goiabão e suicida, Mayakovsky, dizia assim:
Dizem que o sentimento vem do coração
que habita o lado esquerdo do peito do homem.
Mas, em mim a anatomia virou loucura
Sou todo coração.
Tomsom, Curren, Dora, Slater ou Irons tem em comum a anatomia enlouquecida, assim como eu e voce, uma coisa mais carnal, mais pulsante e coerente com as sensações que experimentamos quando possuídos pelo sal.
Achei tão adequado aquele camarada ali na minha frente, com toda sua história no esporte e fora dele, tantas conquistas e tantos fracassos, cada um deles vividos intensamente, toda vez tentando buscar algo que pudesse ajudar o próximo a superar os obstáculos, aquele surfista sagrado na nossa mitologia, falando em coração, não em alma ou espírito, mas em paixão dura.
Toda paixão é dura e o surfe é impiedoso com os fracos.
Shaun foi aplaudido entusiasticamente pela comunidade de surfistas que ali estava para prestar sua homenagem ao homem que nos ensinou a andar por dentro do tubo.
O tempo dilata-se dentro do tubo, disse Shaun em 76.
Com seu filme Bustin Down the Door, ele insiste em afirmar que voce faz o o que quer com seu tempo - no tubo, fora dele.
Contanto que seja feito com o coração.
Pode parecer uma coisa meio piegas (e é), surfistas são piegas, já repararam ?
Shaun não tem vergonha de nenhum aspecto do surfe que seja embaraçoso, orgulha-se de cada um deles e nos empresta esse orgulho besta em tudo que mete a mão.
Um amigo queixou-se do filme, o analisou de maneira fria, quase triste, destacando-lhe as falhas de roteiro, as extensas entrevistas, um aborrecimento.
Tem pego onda ? perguntei.
Esse filme é restrito para surfistas, desculpe-me.
Por vezes fazemos umas coisas assim, restritas.
Não fará sucesso fora do circuitinho de praias.
Que mal tem isso ?
Surfistas escrevem livros para surfistas, fazem filmes para surfistas e pronto, simples assim.
Somos auto-suficientes pr'essas merdas.
Afinal de contas, foi tambem ele que confessou numa entrevista nos anos 80:
Todo surfista que conheci tem um arzinho superior de alguem que sabe alguma coisa que os outros não sabem.
Parecem achar que são superiores aos meros mortais.
Quer saber ?
Eu tambem acho.
*Escrito por Júlio Adler